O centenário de Caymmi e a Bahia de ioiô
“Ai, ai que saudade eu tenho da Bahia”, cantava Dorival Caymmi (1914-2008) nos idos dos anos 50, já morando no Rio, onde conheceu sua mulher, a mineira Stella Maris (1940- 2008) e criou família. Mas a Bahia nunca saiu dos seus versos e, muito menos do pensamento e coração de Caymmi, que hoje faria cem anos.
“Esse homem levou a Bahia longe. Ainda vai passar muito tempo e ele não vai deixar de levar. Isso é muito lindo”, afirma Paloma Amado, filha do escritor Jorge Amado (1912- 2001), parceiro e amigo de Dorival, com quem compôs alguns clássicos, como É Doce Morrer no Mar, Modinha para Teresa Batista e Canto de Obá. “Muito mais do que parceiros, eles se consideravam irmãos gêmeos”, define.
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Certamente sua maior fonte de inspiração, o mar da Bahia é tema recorrente nas canções de Dorival Caymmi, que se dizia ‘um homem do cais da Bahia, devoto também de Iemanjá’ |
“Eu ouvi, dele e de meu pai, a afirmação de que, se Jorge fosse compositor, ele escreveria as músicas de Caymmi. E, se Caymmi fosse escritor, faria as obras de Jorge. E é verdade”, endossa outro filho de Amado, João Jorge, para, em seguida, completar: “Dorival foi quem inventou a Bahia”.
E era uma Bahia de poesia, romantismo. A Bahia ingênua e pura dos pescadores; das mulatas e baianas de acarajé; dos orixás; das paisagens e belezas naturais; do vai e vem nas ruas, retratando em versos a rotina da cidade. A Bahia negra e praieira de Caymmi, dedilhada na cadência de seu violão; ora em samba-canção, ora em valsas e modinhas.
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Dorival em momento contemplação, na Lagoa do Abaeté: ‘Ficou gravado em mim pela beleza do lugar; puro’ (Foto: Acervo Família Caymmi) |
“A Bahia e Dorival se confundem; é uma coisa só. E o Brasil conhece a Bahia a partir de artistas como ele e Jorge Amado”, afirma o artista plástico Juarez Paraíso. “Suas canções são grandes lemas, páginas de poesia; de estrutura simples, mas, ao mesmo tempo, complexa de conteúdo humano, e atualíssimas até hoje. Era a genialidade em pessoa”. Ao que João Jorge ratifica: “Quando você ouve uma música dele, você vê a Bahia viva, acontecendo”.
Inspirações
Em sua Bahia, Caymmi podia cantar de Mãe Menininha, a quem dedicou um samba, às suas 365 igrejas, passando pelas festividades no mar da rainha Iemanjá. “Os negros e mulatos, que têm sua vida amarrada ao mar, têm sido a minha mais permanente inspiração. Nada mais sou que um homem do cais da Bahia, devoto também de Iemanjá, certo também que estamos todos nós nas suas mãos, rogando que não envie os ventos da tempestade; que seja de bonança o mar da minha vida”, declarava Dorival.
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Dorival Caymmi em seu apartamento, em Copacabana, ao lado da esposa, Stella Maris, e dos filhos: Dori, Danilo e Nana: os três herdaram o legado e o talento musical do pai |
Não por acaso, ele cantarolou como era “doce morrer no mar”, narrou a lida diária dos pescadores, a jangada que saía e voltava abençoada com o peixe bom. Nada parecia superar a sua relação, quase simbiótica, com as águas salgadas da Bahia. “É uma canção que tenho vontade que se lembrem de mim através dela”, declarou sobre O Mar, cujos versos enaltecem o quanto é bonito a água quebrando na praia.
Mas ele também cantou o tabuleiro da baiana, com seu vatapá feito por quem sabe mexer; bem como o ritual das lavadeiras na Lagoa do Abaeté, de água escura, arrodeada de areia branca. “O Abaeté ficou gravado em mim pela beleza do lugar; rústico, puro”, recordou o artista no documentário Um Certo Dorival Caymmi (Aluísio Didier, 1999).
“Caymmi era um raro compositor e falava de vários temas com simplicidade e grandeza. A sua Bahia está aí; no seu legado que são suas canções. E na minha memória de criança feliz”, afirma Gal Costa, garantindo que sabe cantar todas as suas canções.
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Jorge Amado e Dorival assinam alguns clássicos juntos, como a toada É Doce Morrer no Mar. “Muito mais que parceiros, eles se consideravam irmãos gêmeos”, conta Paloma, filha do escritor |
Do samba à bossa Em mais de 60 anos de carreira e 50 discos (entre obras próprias e participações), Caymmi escreveu pouco mais de 100 composições, o que alimentava o mito da preguiça baiana. Mas, como bem disse Caetano Veloso, certa feita: “Escrevi 400 canções e Dorival Caymmi 70. Mas ele tem 70 canções perfeitas e eu não”.
O tropicalista Tom Zé endossa: “Eu era muito jovem e Dorival me impressionava profundamente; principalmente a maneira de compor, mudando de andamento e estruturando seções bem compartimentadas. Sua influência na carreira de nós todos, tropicalistas, é imensa e plena”. Os devidos créditos à marca Caymmi na música brasileira, entretanto, antecedem ao tropicalismo, tendo sido fundamental para formatar a bossa nova de Tom Jobim (1927-1994) e João Gilberto, se estendendo aos Novos Baianos e influenciando artistas até hoje.
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Caymmi e Gal Costa durante o show Gal Canta Caymmi, nos anos 70. “A Bahia de Caymmi Bahia está aí; no seu legado que são suas canções. E na minha memória de criança feliz”, diz Gal |
Que o diga o novo disco de Gilberto Gil, Gilbertos Samba, lançado em homenagem a João Gilberto, mas que perpassa a obra de Dorival, presente em duas das 12 faixas. Inclusive, na inédita Gilbertos, gravada com Dori, primogênito de Caymmi, o cantor o cita como “quem nos deu a noção da canção como um liceu”. Gil, que foi casado com Nana e, portanto, genro de Dorival, já declarou que ele foi um dos seus grandes mestres.
Em família
O primeiro contato de Caymmi com a música remete à infância. “Eu devia ter entre 2 e 4 anos e, de repente, fui tocado por um som que vinha da vitrola do vizinho. Fiquei tomado”, contou, em Um Certo Dorival Caymmi.
Criado numa casa em que a mãe cantarolava e o pai tocava bandolim, a música naturalizou-se para Dorival. Ele chegou a cursar Direito no Rio de Janeiro mas, para garantir o pão de cada dia, apanhou seu violão e desembarcou na Rádio Tupi. “Passei a ser Cantor dos Mares, da Bahia”, relembrou no documentário.
Seu primeiro sucesso já demonstrava a devoção à sua terra. Interpretada por Carmen Miranda (1909-1955) e parte da trilha sonora do longa Banana da Terra, O Que é Que a Baiana Tem? data de 1939. Declaradamente influenciado pelo que via – “esses olhos vão ver a canção; eles veem e realizam” –, Caymmi seguiu transformando paisagens, fatos e pessoas em música, eternizando sua maneira de ver, sentir e ser a Bahia.
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Com o fotógrafo e etnólogo franco-brasileiro Pierre Verger. Ele e Dorival dividiam o amor pela Bahia negra e ajudaram a construir a imagem vendida para o resto do Brasil – e mesmo o mundo |
Contemporânea de Dorival, Alta Rosa, viúva de Calazans Neto (1932-2006), relembra, em tom saudosista, essa Bahia versada pelo amigo. “A Bahia que Dorival cantava era dengo, como ele mesmo era; dengoso. Mas está perdendo aquela delicadeza”.
Em sua última visita ao estado, em 2006, quando veio receber o Prêmio Jorge Amado de Literatura e Arte, Dorival, enfim, parecia reconhecer o seu legado. “Agora, sinto que fiz a minha parte. A Bahia é a minha vida, a minha história. Minhas músicas falam de uma Bahia que amo; autêntica e diferente de todos os estados”.
Aos 92 anos e já debilitado, ele subiu ao palco do Teatro Castro Alves de cadeira de rodas. Fazia 11 anos que Dorival não vinha aqui e foi aplaudido de pé, durante 15 minutos, pelos cerca de 1,5 mil convidados. Pois que sigamos aplaudindo-o pela sua eternidade. A Bahia e sua gente agradecem.